Matéria escrita por Lucas Pretti, para o link do Estadão
Hermeto Pascoal tem 72 anos e não passa mais de 24 horas sem rabiscar novas combinações de notas musicais e símbolos de percussão em pilhas de partituras. A única diferença para os tempos de criança é o papel. Na Alagoas dos anos 30, o pequeno Hermeto já compunha todo dia, em rios, árvores, na companhia dos passarinhos. Curiosamente, porém, o “Beethoven do século 20” (como o define o acordeonista Sivuca) nunca volta para rever as tais notas escritas. “Minhas músicas são pétalas soltas, estão voando por aí.”
E, assim, Hermeto deixou suas pétalas ao vento. Desde novembro, abriu mão das licenças pela internet e liberou para uso de qualquer músico todas as composições registradas em seu nome. Nesta semana, promete disponibilizar parte da imensa e riquíssima discografia (são 34 álbuns) para download gratuito, num processo que chegará em alguns meses à totalidade da produção formal.
Internet é um assunto até certo ponto desconhecido para Hermeto. Foi a parceira musical, espiritual e amorosa Aline Morena a fonte de influência digital do compositor. Quando começaram a namorar, em 2002, ela não se conformava que um artista do porte de Hermeto (referência internacional, inovador, vanguardista) não tivesse sequer um site próprio. Na lista de “desleixos” estava também a desorganização dos registros de músicas (que fez com que ele nunca ganhasse dinheiro com vendas de discos e CDs – só com shows).
Aline resolveu o problema da comunicação e criou quatro sites, um para cada tipo de apresentação de Hermeto (com a Big Band, o Grupo, orquestras sinfônicas e para o duo com ela) e plantou na cabeça genial do compositor algumas sementes de cultura livre. Seria difícil o conceito não germinar. Em 1973, o visionário alagoano já batizava um álbum de A Música Livre de Hermeto Pascoal.
A ideia de liberdade já estava desde então algo relacionada com a disseminação, a distribuição, a pulverização das composições. Um jargão famoso de Hermeto é a frase “tudo é música”. Se qualquer um faz música com qualquer coisa (objetos, plantas, voz, etc.) – e portanto as músicas dele são livres por natureza –, temos uma espécie de música de “código aberto”, colaborativa, termos comuns para leitores do noticiário de tecnologia e que desapareceram da música comercial antes do MP3.
Isso tanto é transformador que a música livre evoluiu para o que hoje a dupla Hermeto Pascoal e Aline Morena chama de “música universal”. Nada a ver com a “world music” disseminada por aí, e que significa apenas a forma de as culturas dominantes globais aceitarem regionalismos como o brasileiro e o indiano, por exemplo. Música universal não é isso. É o que há de universal, primordial, anterior e essencial na música.
Hermeto e Aline não usam idiomas conhecidos para compor canções sob o estigma universal. É uma letra formada por palavras inventadas sob uma lógica própria, não necessariamente com significados. É a busca da dupla pela sonoridade, por fonemas que provocam sensações – cuja liberdade também inclui a de interpretação. Assim, a composição da música universal só termina no momento em que ressoa nos tímpanos.
Essa abordagem “alinguística” também faz parte das pesquisas mais avançadas hoje em artes cênicas. O diretor inglês Peter Brook chegou a algo parecido à música universal de Hermeto com o teatro rústico, nos anos 1970. Brook e os atores de diversas nacionalidades do Centre International de Recherche Théâ-trale (Cirt) parisiense passaram três meses de 1974 em tribos africanas para entender o que havia no teatro que se comunicava com qualquer cultura (gestos, sons, expressões, ritmos). A pesquisa fez avançar as descobertas contemporâneas de linguagem – equivalente ao que o brasileiro Hermeto fez na música.
A última criação organizada do compositor foi Chimarrão com Rapadura, CD e DVD de 2006 em dupla com Aline Morena. Imagine a dificuldade de selecionar 19 canções e melodias entre as centenas criadas diariamente. Nesse álbum, Hermeto toca cavaco, pandeiro, surdo, escaleta, piano com fita crepe, caixa, zabumba, triângulo, baixo, flauta doce, viola caipira, fole, flauta-baixo, percussão com teclas, flugelhorn, iefone, brinquedos, balde, garfo, faca, trumpetinho, chavozeleira, piano, porta, copos de plástico e mangueira. O detalhe é que nem tudo é instrumento.
Apesar da variedade de artefatos sonoros, Hermeto Pascoal não se encantou ainda pelos sons fabricados. Não há quase nada sintético na obra que já dura 53 anos, mesmo com a invasão de aparelhos eletrônicos dos últimos 30. “Nada contra esse tipo de música. Mas, para mim, os sons devem ser naturais. Têm mais sabor.”
Nascido na roça alagoana, ele morou mais de 20 anos em São Paulo, gravou nos Estados Unidos com Miles Davis, influenciou Beatles com o Quarteto Novo, é festejado por onde passa no mundo. Prega a música aberta. Hoje mora em Curitiba e nunca deixou de fugir do sol. A pele albina sofre, os olhos também. É só o que há de hermético em Hermeto Pascoal.
Fonte: http://www.link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=15545
mundo melhorando…..
Sem dúvida…todo movimento pra abertura da rede pra algo efetivamente paratodos é fundamental…até pra acabar com as confusões que se faz entre pirataria e informação livre, livre transito comunicativo… as gravadoras de grandes corporações só querem o dinheiro dos consumidores e o sangue dos artistas..nem sabem o que estão vendendo e ainda hipocritamente baixam musica em suas casas… criano processos pra prender os caras do pirate bay…pela liberdade de informação…valeu Hermeto, valeu dada radio….